Tudo! Nada!

11.2.03

COTAS:


Assisti a uma reportagem na televisão que tratava de um tema um tanto quanto polêmico, que tem sido alvo de discussões intensas nos últimos anos no Brasil. A matéria tratava da questão de se criar cotas nas faculdades, para assegurar o ingresso de estudantes que se declarassem negros, pardos, etc. e também aqueles provenientes de escolas públicas, dando a eles chances compatíveis com as oportunidades que a vida os proporcionou, visto que são encarados como classes desfavorecidas em nossa sociedade. Houve algumas entrevistas. Não é surpresa que alguns entrevistados tenham se mostrado revoltados com tal iniciativa, não entendendo que o que se está fazendo nesses casos se chama “justiça”, que é nada mais nada menos do que “tratar com desigualdade aqueles que são desiguais”.
O assunto muito me interessou, visto que tal iniciativa é fato, e está posta em prática numa faculdade do Rio de Janeiro. Esse acontecimento é, de forma inegável, reflexo de um desequilíbrio social em nosso país. É notadamente visível que as classes de pessoas que estudaram em escolas públicas e os negros são, infelizmente, desfavorecidos econômica e socialmente no Brasil. O preconceito aqui não existe como em alguns outros países, como nos Estados Unidos, por exemplo, onde a discriminação é explícita e se discute o assunto abertamente. Entretanto, basta dar um passeio pelas cidades brasileiras, e ver que os negros, entre outras classes, (que têm a maioria de sua população composta de indivíduos pobres), são as pessoas que ocupam os empregos de menor remuneração, ou aqueles que requerem maior esforço físico, menor exigência de qualificação técnica e acadêmica, etc. Não é difícil perceber que esta condição foi imposta a essas classes de pessoas, que estão “amarradas” a um ciclo que pouco lhes dá oportunidades de mudar. O racismo, no Brasil, está encrustado nos hábitos das pessoas, “escrito na testa” das autoridades, e é praticado em toda “esquina”. Isso é grave! Os negros e outras classes que sofrem discriminações têm menores oportunidades, portanto dificilmente podem ter acesso a boas escolas básicas (que na maioria das vezes são particulares), e isso lhes faz “ver por terra” as oportunidades de ingressar numa faculdade, com o intuito de galgar uma trajetória ascendente e bem sucedida na vida. Como num filme que se repete, os filhos dessas pessoas, por sua vez, nascem, crescem, e acabam passando pelos mesmos problemas. Isso ocorre há tempos por aqui!
Agora pense: essa situação social não é fruto do racismo? Pois eu digo que é. E é um racismo cruel, que não têm sido expressado em palavras, mas o que é pior, em atitudes, através da imposicão de barreiras sociais. A criação de cotas, então, é uma solução imediatista, mas extremamente necessária à conjuntura atual da sociedade brasileira. Na reportagem na televisão, e também em conversas nas ruas, já ouvi várias pessoas dizendo: “mas essa idéia de criar cotas para os menos favorecidos já demonstra um preconceito com essas pessoas”. Não é verdade que essa ação demonstra “preconceito”; mas ela “reconhece” que o preconceito existe! E ele existe, mesmo! Eu mencionei que essa ação é imediatista, porque, naturalmente essas cotas tendem a sumir, com o passar do tempo. Pense bem: se as pessoas que antes não tinham acesso às faculdades puderem exercer realmente seus direitos à educação, em breve se tornarão profissionais bem sucedidos, com melhores condições sócio-econômicas. Daí, surgirão descendentes dessas pessoas; estes últimos, por sua vez, terão condições melhores que as de seus antecessores, e conquistarão seu espaço com maior facilidade e apoio da sociedade, num futuro não muito longínqüo. A partir desse pensamento, vê-se que a tendência, com essa “polêmica” medida das cotas, é criar uma sociedade igualitária, sem disputas tolas fundamentadas em questões imbecis, uma sociedade que proporcione a seus componentes, dignidade em ser cidadãos, além de chances iguais ao se começar a busca da conquista de qualquer carreira profissional.
Também tive a oportunidade de discutir com várias pessoas, entre elas a Cecília, o André, o Léo e o meu pai também, que têm opiniões divergentes. Uns, mesmo ao se deparar com o fato do preconceito, dizem que os que não se declaram negros e os alunos que vieram das escolas particulares estão sendo prejudicados nesses acontecimentos; outros, pensam o contrário. Matematicamente, é claro que essas pessoas têm suas vagas diminuídas, e isso torna seu ingresso nas faculdades cada vez mais difícil. Mas essa dificuldade não é nada, se comparada à condenação brutal imposta àqueles menos afortunados, excluídos não por regulamento algum, mas sim pela cor de sua pele, ou pela procedência da escola à qual pertenceram no passado. Ainda assim, o atraso social oriundo desse preconceito praticado em nossa sociedade levará anos para ser um problema resolvido, pois estamos engatinhando na evolução rumo à solução do problema, caso tudo dê certo.
Concluindo, penso que concordar com a implantação desse método é ter consciência de que os preconceitos existem, mas ao mesmo tempo, devem ser combatidos. A utilização dessas cotas pelos candidatos não é obrigatória, portanto não configura nenhuma imposição de aceitação oficializada de “preconceito”, além de continuar respeitando os outros candidatos. Entendo que estão começando a “tirar o atraso social” que se arrastou sem fôlego, perdurando até os dias atuais... e que não agüenta mais esperar por “novos ares”!

Esta obra também está disponível em vinil, k-7 e dvd. Som Livre! Ahahahaha!

9.2.03

Medo de altura:

Aquela ocasião seria apenas mais um dia comum de minha vida, caso aquele senhor, de aparência humilde e uma voz tão fraca que o fazia difícil de se entender, não tivesse me feito uma pergunta. Uma indagação que veio rápido como uma flecha em minha direção, mas cuja resposta não se efetivará com tal celeridade, caso eu realmente tenha uma reposta para aquele ancião o qual nem sei o nome.
Tudo aconteceu numa praça, no centro da cidade, quando eu, desprovido de qualquer compromisso àquele momento, perambulava livremente, sem destino pelos arredores, fora interceptado pelo tal senhor, que me perguntou, para “puxar papo”, em que lugar eu vivo. Bem, a conversa terminou, o velhinho se foi, e cá estou eu, pensando onde eu “vivo”. Não dei uma resposta exata para ele, apenas disse que eu “vivo”, sem saber realmente onde!
Meus pensamentos começaram a concatenar idéias, e agora sim, eu teria respostas melhores para dar àquela criatura. Ora, eu vivo num lugar lá no “auto”, embora eu resida num vale. Sim, eu vivo no “auto” da minha ignorância, e também da minha sapiência. Vivo mergulhado mais no “auto”, do que em qualquer outro lugar. Vez por outra, eu caio no “auto”, e por ali fico durante muito tempo. Vivo no meu “auto-mundo”, que é “auto-suficiente”, e que não precisa dos outros para existir. Teço minhas teias (uma homenagem ao Ronaldo) para prender as moscas do mundo; desenho minha realidade do jeito que melhor me convém, e acredito nela; desafio leis de qualquer natureza, invento realidades absolutas e ultrapasso a barreira do aceitável. Torno-me, para algumas coisas, incansável; e, para outras, esgotado. Enfim, vivo a flutuar no mundo da minha própria imaginação; por isso vivo nas “profundezas da autura” geral. Existo submerso na imensidão do meu próprio pensamento, que perfaz meu mundo particular.
Esse “auto”, (o meu próprio mundo), não me impede de visitar o mundo coletivo de vez em quando. Mas... quem não vive no auto? (e chega de aspas para destacar o auto)! Só quem é louco consegue viver no mundo de todos. Porque o mundo de todos é formado por cada mundo individual, e isso eu já havia escrito em um outro texto, noutra situação. O auto-mundo se refere à individualidade de cada um: cada segundo vivido dentro de uma carcaça de carne e osso individual, cada espirro e cada alegria vivenciados por cada um de nós. Lá no auto, só eu sei como é ser assim, e só você sabe como é ser assado.
O velhinho da praça agora deve imaginar onde eu possa viver, ou então já esqueceu do assunto. Vivo só, como todos vivem. É por isso que somos todos uma grande convivência de “solidões” tão solitárias em busca de harmonia, somos auto-suficientes apenas para nós mesmos, e justamente por isso, precisamos dos outros.
É aí que esse “autismo” encontra seus “companheiros”: no convívio! Observamos uns, os “mundos” dos outros. Assim como o Alan observa o meu autismo, como o Giovanni repara no Ronaldo, e o João Paulo observa o meu autismo, também. Observamos todos a onipotência frágil, porém solene de um professor, que sem a “platéia” de alunos ávidos pela transmissão de conhecimentos, se sentiria um frustrado. Imaginem que o professor essencialmente seria o mesmo, (com os mesmos conhecimentos e a mesma habilidade), sem os alunos. Mas, praticamente, “depende” dos alunos para ser realmente um professor. Nunca vi professor fazer carreira dando aulas ao vento! Na realidade, todo mundo é só mais um autista na multidão, e cada um vive num lugar mais “auto” que o outro. Até as convivências entre nós humanos são de caráter extremamente egoístas, porque, cedo ou tarde, esperamos, invariavelmente, reciprocidade em qualquer ato. Se você disser que não, eu digo que você está mentindo, ou é um “falso frio”.
Tanto somos moradores do auto, que só percebemos o mundo a partir de nós mesmos, até onde eu conheço a realidade. Imagine se você acordasse amanhã no corpo da sua professora, e depois de amanhã você fosse o papa João Paulo, o ditador Fidel Castro, ou o Sadam Hussein? Aí sim, poderia ver o mundo com diversos olhos! Poderia fazer dos versos de uma canção “eu sou de ninguém/eu sou de todo mundo/e todo mundo é meu também”, versos seus, e conseqüentemente, versos do resto do mundo. Mas não é bem por aí. Nossas próprias limitações físicas nos levam à solidão. O autistas do mundo coletivo e solidário existem de verdade.
A própria individualidade, expressa através de características inconfudíveis, físicas, psíquicas, documentais, etc., nos faz, por natureza, autistas. Somos, portanto, moradores lá do “auto”, mesmo sabendo que conviver “é uma arte”. Talvez por isso conviver seja complicado, porque naturalmente sejamos seres anti-sociais. Nos vencemos todos os dias, para quebrar essa inamovibilidade ideológica que insiste em nos tornar ilhas inertes e incomunicáveis, embora por vezes nos incomode o fato de sermos falsas praias à disposição dos turistas que pela costa passeiam.
Minha mente continua no “auto” daquele morro, e meu corpo, de certa forma, também está no “auto”, mesmo estando com os pés no chão. Todos estão voando numa “autura” diferente, para não se encontrarem. O fato de os humanos compartilharem alguns momentos juntos, é pura coincidência do destino, pois o destino também vive no “alto”, muito “auto”! Somos nossos próprios destinos, e de vez em quando, nos cruzamos por aí!